Quando li acidentalmente um fragmento de uma tradução Inglesa do Livro do Desassossego, fiquei absolutamente espantado. Falava de coisas em que eu já tinha pensado, expressando-as de forma tão poderosa, tão bela, tão original. Decidi logo traduzir esse fragmento para Albanês, para o contemplar na minha língua natal, de modo a senti-lo mais intimamente, de mais perto. Era 1999 e eu estudava linguística na UCL University em Londres. Mais tarde decidi traduzir todo o Livro, para ter a certeza que lia, estudava, compreendia - e talvez internalizasse - o seu inteiro conteúdo.
Não falo Português, mas não podia simplesmente basear-me numa tradução para fazer a minha; como poderia saber então se estava verdadeiramente a traduzir Pessoa? Então decidi consultar o original. Felizmente o Português é uma língua Romanesca e analisar estruturas línguisticas era exactamente o que eu fazia nessa altura.
Para me guiar na descodificação do texto original, para cada fragmento que lia, eu ia ver a página correspondente nas traduções para Inglês de Richard Zenith, a primeira e a segunda, para estudar as diferenças, e depois a tradução de Margaret Jul Costa, desta vez a versão completa, e Alfred Mac Adam, sempre que o fragmento estava nesta última. Ao longo do tempo, acrescentei a esta lista Le Livre de L'intranquilité de Françoise Laye, que sinceramente só usava quando o significado a frase original era obscura, e precisava de obter o máximo de leituras possíveis da mesma. Recentemente, tendo encontrado-a online, comecei a usar também a tradução Croata de Tatjana Tarburk.
Para além destas referências, consultei a tradução Google do fragmento para Inglês. Assim eu obtenho ainda mais uma tradução, se bem que literal. Há mesmo assim algo a aprender desta tradução, sobretudo porque o Google melhorou incrivelmente nos últimos anos. No ínicio eu costumava escrever manualmente os fragmentos, copiando-os palavra a palavra, primeiro da segunda edição das Publicações Europa-América, depois das terceira e quarta edições do Livro do Desassossego pela Assírio & Alvim, mas desde que o arquivopessoa.net ficou disponível eu passei a copiar directamente os fragmentos dali. Agora, desde o fantástico Arquivo LdoD ficou disponível online, eu encontro os fragmentos ali e posso até compará-los entre diferentes cópias face aos facsimiles.
Para avançar com a descodificação do original, também verifico quase todas as palavras no dicionário online de Português da Priberam. Respect para aqueles que o mantêm. Dá-me, entre outras coisas, o paradigma da conjugação para cada verbo. E, quando Pessoa diz coisas como "aquela rapaz", posso também usar o pronome demonstrativo feminino ao lado do nome masculino em Albanês, sendo uma característica que nenhuma tradução Inglesa consegue mostrar. Também copio os diferentes significados listados no dicionário Priberam para as palavras pesquisadas para o Google Translate. Verifico aqueles significados versus as palavras usadas por outros tradutores.
Quando as frases e as noções por detrás delas se tornam claras, traduzo-as, usando nove diferentes dicionários, tanto bilinguais como monolinguais, impressos e online. Frequentamente ajudam-me a encontrar a palavra Albanesa exacta que eu sei existe mas da qual não me consigo lembrar naquele momento preciso. Para confrontar Pessoa com uma língua correspodente, li dezenas de autores Albaneses - a maioria dos quais clássicos - tirando notas, sublinhando palavras e usando-as, quando apropriadas, nas minhas traduções.
Presto particular atenção ao ritmo Pessoano, desafiando-me a usar uma linguagem tão concisa como a que ele usa. Por exemplo, se a água do Tejo é descrita como sendo de um "azul esverdeado a ouro", fico atento para não usar uma tradução demasiado loquaz que poderia tornar a frase prosaica. Por ser uma linguagem inflectida, o Albanês tem uma sintaxe fluida, e por isso posso manter a suberba sintaxe de Pessoa, de frases fragmentárias e misturadas.
São de grande importância para mim as imagens que Pessoa descreve. Quero que elas sondem tão vívidas na minha tradução como são no original. Fecho os olhos e vejo-me a andar nas ruas da Baixa de Lisboa, os pavimentos peculiares, os vendedores de rua, os azulejos nas paredes dos prédios, os cantores de fado na rua, os eléctricos, o Tejo mais ao longe e o Castelo alto na colina. Até fui a Lisboa em Maio de 2004 para ver tudo em primeira-mão. Tirei fotos da sua máquina de escrever, tomei um café sentado ao lado da sua estátua no Café A Brasileira, jantei no Martinho da Arcada onde grande parte do livro foi escrito, encontrei o especialista Pessoano Richard Zenith, fui ver o túmulo de Pessoa no Mosteiro dos Jerónimos e até escolhi um quarto no quarto andar de uma pensão na Rua dos Douradores, só para ver com os próprios olhos a vista que Bernardo Soares tinha da sua janela. Para minha surpresa, Lisboa era um local estranhamente ensolarado, sendo a única chuva o meu desejo por ela.
Eu reli e editei os meus fragmentos uma e outra vez, tentando colocar de forma mais clara a imagética, num Albanês tão idiomático e fluente quanto possível. É um processo demorado e muitas vezes tormentoso. Por vezes há frases com treze ou mais linhas no original, e levo até seis horas para conseguir escrutiná-las e traduzi-las. No entanto, a melhor recompensa que tenho são as opiniões de pessoas que valorizo que me dizendo-me que os fragmentos parecem escritos originalmente em Albanês. O processo tem, tenho de o admitir, ficado mais fácil ao longo dos anos, enquanto a minha capacidade de ler passivamente o Português melhorou devido a esta práctica rigososa. Publiquei partes da minha tradução em diferentes revistas literárias, apresentando Pessoa a leitores que o mal conheciam.
A minha tradução do Livro do Desassossego, até certo ponto, partilha o destino do trabalho original. Como o original, composto de fragmentos ao longo de vinte anos, a tradução compõem-se de fragmentos traduzidos ao longo de quase vinte anos. Pessoa ele mesmo tinha abandonado o livro durante quase todos os anos de 1920, e eu abandonei a tradução durante mais de uma década. O livro dele é considerado a sua obra-mestra; a minha traduçã é até agora o mais ardente trabalho a que me propus na minha inteira carreira de tradutor.
Restam agora menos de setenta páginas à espera de serem traduzidas. No entanto, sendo capaz de dedicar à tradução apenas certos fins-de-semana e férias, e dada a minha mania de dissecar todos os pormenores, a mesma irá levar-me certamente bem para o fim de 2019. Então terei também 47 anos, a idade que Pessoa tinha quando escreve os últimos fragmentos do seu livro, devido à sua prematura morte. Espero sinceramente que a analogia não contnue a aplicar-se mais do que até agora.
Já me sinto, com o fim a aproximar-se, não só triste, mas com uma saudade Pessoana - será uma partida de um mundo que se tornou um abrigo, uma forma de "sair da minha própria existência para me encontrar". Pessoa ele mesmo tem sido mais do que um companheiro, um verdadeiro amigo intímo e, mais do que tudo, um professor.
Decidi que não seria uma despedida, no fim de tudo, quer de Pessoa quer da minha nova capacidade de entender e traduzir o Português escrito. Já planeiro traduzir O Banqueiro Anarquista, como a meu próximo projecto Pessoano.
Também planeiro regressar a Lisboa quando a tradução for publicada, para deixar uma cópia na biblioteca da Casa Fernando Pessoa para que se junto a tantas outras traduções em diferentes línguas que já se encontram lá. Gostava de me encontrar com tantos amantes de Pessoa qanto fosse possível e partilhar com eles a minha história. Tentarei porém vir no início da Primavera ou no Outono. Espero que chova.
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Gazi Bërlajolli é um linguista, tradutor e editor Albanês que vive em Prishtina, a capital do Kosovo. Fala Albanês, Inglês, Croata, algum Francês e Turco, mas não Português. No entanto embarcou num ambicioso projecto: traduzir o Livro do Desassosego de Fernando Pessoa directamente do Português. Podem contactá-lo através do email: gberlajolli@gmail.com
Não falo Português, mas não podia simplesmente basear-me numa tradução para fazer a minha; como poderia saber então se estava verdadeiramente a traduzir Pessoa? Então decidi consultar o original. Felizmente o Português é uma língua Romanesca e analisar estruturas línguisticas era exactamente o que eu fazia nessa altura.
Para me guiar na descodificação do texto original, para cada fragmento que lia, eu ia ver a página correspondente nas traduções para Inglês de Richard Zenith, a primeira e a segunda, para estudar as diferenças, e depois a tradução de Margaret Jul Costa, desta vez a versão completa, e Alfred Mac Adam, sempre que o fragmento estava nesta última. Ao longo do tempo, acrescentei a esta lista Le Livre de L'intranquilité de Françoise Laye, que sinceramente só usava quando o significado a frase original era obscura, e precisava de obter o máximo de leituras possíveis da mesma. Recentemente, tendo encontrado-a online, comecei a usar também a tradução Croata de Tatjana Tarburk.
Para além destas referências, consultei a tradução Google do fragmento para Inglês. Assim eu obtenho ainda mais uma tradução, se bem que literal. Há mesmo assim algo a aprender desta tradução, sobretudo porque o Google melhorou incrivelmente nos últimos anos. No ínicio eu costumava escrever manualmente os fragmentos, copiando-os palavra a palavra, primeiro da segunda edição das Publicações Europa-América, depois das terceira e quarta edições do Livro do Desassossego pela Assírio & Alvim, mas desde que o arquivopessoa.net ficou disponível eu passei a copiar directamente os fragmentos dali. Agora, desde o fantástico Arquivo LdoD ficou disponível online, eu encontro os fragmentos ali e posso até compará-los entre diferentes cópias face aos facsimiles.
Para avançar com a descodificação do original, também verifico quase todas as palavras no dicionário online de Português da Priberam. Respect para aqueles que o mantêm. Dá-me, entre outras coisas, o paradigma da conjugação para cada verbo. E, quando Pessoa diz coisas como "aquela rapaz", posso também usar o pronome demonstrativo feminino ao lado do nome masculino em Albanês, sendo uma característica que nenhuma tradução Inglesa consegue mostrar. Também copio os diferentes significados listados no dicionário Priberam para as palavras pesquisadas para o Google Translate. Verifico aqueles significados versus as palavras usadas por outros tradutores.
Quando as frases e as noções por detrás delas se tornam claras, traduzo-as, usando nove diferentes dicionários, tanto bilinguais como monolinguais, impressos e online. Frequentamente ajudam-me a encontrar a palavra Albanesa exacta que eu sei existe mas da qual não me consigo lembrar naquele momento preciso. Para confrontar Pessoa com uma língua correspodente, li dezenas de autores Albaneses - a maioria dos quais clássicos - tirando notas, sublinhando palavras e usando-as, quando apropriadas, nas minhas traduções.
Presto particular atenção ao ritmo Pessoano, desafiando-me a usar uma linguagem tão concisa como a que ele usa. Por exemplo, se a água do Tejo é descrita como sendo de um "azul esverdeado a ouro", fico atento para não usar uma tradução demasiado loquaz que poderia tornar a frase prosaica. Por ser uma linguagem inflectida, o Albanês tem uma sintaxe fluida, e por isso posso manter a suberba sintaxe de Pessoa, de frases fragmentárias e misturadas.
São de grande importância para mim as imagens que Pessoa descreve. Quero que elas sondem tão vívidas na minha tradução como são no original. Fecho os olhos e vejo-me a andar nas ruas da Baixa de Lisboa, os pavimentos peculiares, os vendedores de rua, os azulejos nas paredes dos prédios, os cantores de fado na rua, os eléctricos, o Tejo mais ao longe e o Castelo alto na colina. Até fui a Lisboa em Maio de 2004 para ver tudo em primeira-mão. Tirei fotos da sua máquina de escrever, tomei um café sentado ao lado da sua estátua no Café A Brasileira, jantei no Martinho da Arcada onde grande parte do livro foi escrito, encontrei o especialista Pessoano Richard Zenith, fui ver o túmulo de Pessoa no Mosteiro dos Jerónimos e até escolhi um quarto no quarto andar de uma pensão na Rua dos Douradores, só para ver com os próprios olhos a vista que Bernardo Soares tinha da sua janela. Para minha surpresa, Lisboa era um local estranhamente ensolarado, sendo a única chuva o meu desejo por ela.
Eu reli e editei os meus fragmentos uma e outra vez, tentando colocar de forma mais clara a imagética, num Albanês tão idiomático e fluente quanto possível. É um processo demorado e muitas vezes tormentoso. Por vezes há frases com treze ou mais linhas no original, e levo até seis horas para conseguir escrutiná-las e traduzi-las. No entanto, a melhor recompensa que tenho são as opiniões de pessoas que valorizo que me dizendo-me que os fragmentos parecem escritos originalmente em Albanês. O processo tem, tenho de o admitir, ficado mais fácil ao longo dos anos, enquanto a minha capacidade de ler passivamente o Português melhorou devido a esta práctica rigososa. Publiquei partes da minha tradução em diferentes revistas literárias, apresentando Pessoa a leitores que o mal conheciam.
A minha tradução do Livro do Desassossego, até certo ponto, partilha o destino do trabalho original. Como o original, composto de fragmentos ao longo de vinte anos, a tradução compõem-se de fragmentos traduzidos ao longo de quase vinte anos. Pessoa ele mesmo tinha abandonado o livro durante quase todos os anos de 1920, e eu abandonei a tradução durante mais de uma década. O livro dele é considerado a sua obra-mestra; a minha traduçã é até agora o mais ardente trabalho a que me propus na minha inteira carreira de tradutor.
Restam agora menos de setenta páginas à espera de serem traduzidas. No entanto, sendo capaz de dedicar à tradução apenas certos fins-de-semana e férias, e dada a minha mania de dissecar todos os pormenores, a mesma irá levar-me certamente bem para o fim de 2019. Então terei também 47 anos, a idade que Pessoa tinha quando escreve os últimos fragmentos do seu livro, devido à sua prematura morte. Espero sinceramente que a analogia não contnue a aplicar-se mais do que até agora.
Já me sinto, com o fim a aproximar-se, não só triste, mas com uma saudade Pessoana - será uma partida de um mundo que se tornou um abrigo, uma forma de "sair da minha própria existência para me encontrar". Pessoa ele mesmo tem sido mais do que um companheiro, um verdadeiro amigo intímo e, mais do que tudo, um professor.
Decidi que não seria uma despedida, no fim de tudo, quer de Pessoa quer da minha nova capacidade de entender e traduzir o Português escrito. Já planeiro traduzir O Banqueiro Anarquista, como a meu próximo projecto Pessoano.
Também planeiro regressar a Lisboa quando a tradução for publicada, para deixar uma cópia na biblioteca da Casa Fernando Pessoa para que se junto a tantas outras traduções em diferentes línguas que já se encontram lá. Gostava de me encontrar com tantos amantes de Pessoa qanto fosse possível e partilhar com eles a minha história. Tentarei porém vir no início da Primavera ou no Outono. Espero que chova.
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Gazi Bërlajolli é um linguista, tradutor e editor Albanês que vive em Prishtina, a capital do Kosovo. Fala Albanês, Inglês, Croata, algum Francês e Turco, mas não Português. No entanto embarcou num ambicioso projecto: traduzir o Livro do Desassosego de Fernando Pessoa directamente do Português. Podem contactá-lo através do email: gberlajolli@gmail.com